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Manaus, a Paris das selvas

Fortemente modelada pela hidrografia da região amazônica, Manaus manteve-se, até meados do século XIX, pouco alterada em relação à época de sua fundação. As ruas sem calçamento e as casas de um só piso, cobertas de palha, somente iriam sofrer alguma modificação a partir do apogeu econômico impulsionado pela exportação da borracha, ocasião em que a cidade estabeleceu vínculos com o restante do país e com o mercado internacional.

A extração, comércio e exportação da borracha começam a adquirir centralidade na economia amazônica a partir da década de 1850, atraindo correntes migratórias vindas tanto do nordeste do país quanto da Europa. Principal exportador de borracha do mundo naquele período, no plano nacional a participação do produto na pauta de exportações brasileiras foi, comparativamente, tão importante quanto a do café. Esse ápice econômico propiciou que a cidade de Manaus recebesse intervenções urbanísticas relevantes, que viriam alterar suas feições de maneira radical.

Entre o final do Império e o início da República, uma série de obras públicas iria propagandear, para investidores e imigrantes em busca de trabalho, as intervenções urbanas que se processavam na cidade. Os ideais de beleza e civilização pautavam as transformações urbanísticas e imprimiam suas marcas na arquitetura de Manaus. Prédios públicos imponentes, aterramento de igarapés, construção de pontes, jardins e avenidas serviam ao projeto do assim chamado embelezamento da cidade. Em paralelo, Manaus passava por uma renovação de costumes imposta por uma série de leis que proibiam desde o ato de estender roupas em ruas e praças até o banho em igarapés para não atentar contra a moral.

As iniciativas da chamada modernização que se processou de forma heterogênea no território brasileiro associadas à desigualdade no acesso a algumas das novas tecnologias da época mantiveram Manaus afastada dos grandes centros decisórios da política. A Proclamação da República, por exemplo, foi noticiada na cidade seis dias depois de ocorrida. Ainda assim, Manaus iniciou suas reformas urbanas antes daquelas ocorridas no Rio de Janeiro, então capital federal. O modelo – Paris – era conhecido in loco pelos filhos da elite que se dirigiam àquela cidade para realizar seus estudos. No retorno, faziam circular os princípios higienistas que presidiram as intervenções realizadas. “Civilização” versus “barbárie” e cultura versus natureza eram os embates que se cristalizavam nas iniciativas de embelezamento. A cidade remodelada passa a ser vista como refúgio, tanto pelos habitantes locais quanto pelos viajantes estrangeiros, em contraste com a floresta, tida como lugar solitário, de paisagem imutável e cotidiano brutal.

Um dos grandes reforços à difusão do discurso modernizador da cidade foi trazido pelas imagens fotográficas. Manaus, até então associada ao exotismo, passou a ser documentada tendo-se como foco os seus símbolos de progresso. As largas avenidas, o bonde, a luz elétrica e até uma réplica da Torre Eiffel começaram a circular em imagens fotográficas paralelamente às de indígenas em poses estudadas, retratados em estúdios. Para além da propaganda sobre os feitos de seus administradores, as imagens do álbum aqui apresentado buscam enfatizar a ideia de civilidade que estaria presente na cidade construída “no meio da selva”.

O fotógrafo

Marco di Panigai [1874–19--], fotógrafo italiano, viveu por vários anos em Manaus. Sua trajetória pode ser intuída a partir das notas e anúncios registrados à época nos periódicos em circulação na cidade. Apresentava-se como conde e era frequentador assíduo das redações dos jornais, os quais noticiavam suas visitas. Panigai mantinha uma relação estreita com o poder, especialmente durante o governo de Constantino Nery, a quem presenteou com um álbum de viagem governamental. O presidente do estado do Amazonas foi, inclusive, uma das testemunhas de casamento de Marco di Panigai com a francesa Marie Jeanne Ghignone, em 1905.

Panigai manteve seu ateliê fotográfico em Manaus ao longo de pelo menos a primeira década do século XX e buscava rivalizar com George Huebner, ambos anunciando frequentemente seus trabalhos e realizando coberturas fotográficas de eventos ocorridos na cidade. Dos anúncios sobre seu ateliê, depreende-se uma preocupação em oferecer equipamentos fotográficos modernos, como o publicado no Jornal do Comércio do Amazonas, em que informa seus clientes sobre a aquisição dos “aparelhos Zeiss” com os quais “conseguem-se, em quaisquer condições atmosféricas, as mais belas positivas, com a máxima nitidez e instantaneidade”. Além de fotógrafo, executava retratos a crayon, óleo, pastel e aquarela, e realizava exposições de seus trabalhos, como a de 1904 na reabertura da joalheria Porta Larga, em Manaus.

Marco di Panigai acompanhou o presidente Afonso Pena em sua viagem ao Amazonas, em 1906, que resultou no álbum aqui parcialmente reproduzido, custando aos cofres públicos trinta contos de réis, segundo o relatório apresentado a Constantino Nery pelo inspetor do Tesouro do Amazonas em 1907. Na virada de 1910, os jornais e os relatórios da Inspetoria do Tesouro do Amazonas alteram o foco das notícias: ao mesmo tempo em que os anúncios do ateliê cessam de ser publicados, o nome de Marco di Panigai passa a ser associado ao contrato realizado com o governo para a confecção de cinco mil álbuns de vistas do Amazonas e sessenta retratos dos presidentes da ex-província e governadores do estado, pelo qual teria recebido uma parte do valor acordado, sem contudo entregar o trabalho. A Fazenda estadual igualmente condenou-o a entregar um gabinete antropométrico e outro fotográfico para a repartição de polícia, os quais já haviam sido pagos pelo estado. A última referência encontrada sobre o conde Marco di Panigai, no relatório do presidente do Amazonas de 1923, apresenta o fotógrafo indo negociar um empréstimo em Nova Iorque, em nome do governo estadual, para construção de uma estrada de ferro que assegurasse acesso ao Atlântico, intenção frustrada pelo governo federal, que desautorizou a empreitada.

O álbum

Afonso Pena, após eleito, contrariando o costume de presidentes visitarem o exterior, empreendeu uma viagem de instrução pelo país com o intuito declarado de conhecer suas necessidades e avaliar a situação em que se encontravam os estados. Foi acompanhado de jornalistas do Rio de Janeiro, que dia a dia preparavam matérias ilustradas com fotogravuras e, por meio de telegramas, encaminhavam-nas para publicação na imprensa carioca e nas folhas dos locais visitados. Aspectos de todo tipo eram noticiados. A imprensa foi convidada, por exemplo, a visitar o navio presidencial – o “Maranhão” – e foram escritas matérias sobre suas especificações técnicas, o roteiro da viagem, os itens que compunham a dispensa de bordo, assim como os perfis do pessoal embarcado. A viagem foi planejada pelo engenheiro Aarão Reis, responsável pelos estudos, planejamento e construção da nova capital de Minas Gerais. Objeto de encarniçados debates, a excursão presidencial foi criticada pela rapidez com que o presidente eleito ficaria em cada lugar. Em Manaus foi recebida pela folha local Correio do Norte com extensas denúncias de corrupção no governo do estado; professores e juízes das cidades do interior sem salários; gastos excessivos, inclusive com a própria recepção ao presidente.

O álbum da visita do ex-presidente a Manaus, realizado por Marco di Panigai, integra o fundo Afonso Pena e contém, em sua primeira página, uma dedicatória de Antônio Constantino Nery. No texto se lê: “Ao Exmo. Sr. Dr. Afonso Augusto Moreira Pena, como lembrança a mais afetiva de sua visita ao Amazonas, promissora de grandes progressos e cheia de vivíssimas esperanças para o estado que dirijo”.

As imagens fotográficas constantes do álbum buscam reforçar a ideia de progresso: os trilhos de bonde são onipresentes, os prédios públicos enquadrados de maneira a ressaltar sua grandiosidade, e os indivíduos, preferencialmente em aglomerações, são flagrados assistindo disciplinadamente a solenidades cívicas. As vistas que incluem aspectos naturais, como os igarapés, são tomadas sempre à distância; os edifícios, ao contrário, são retratados de mais próximo. Nas poucas imagens em que há transeuntes, eles raramente estão posando, mas posicionados de costas para a câmera. Cada página do álbum é decorada com pinturas diferentes de arranjos florais, possivelmente de autoria do próprio Marco di Panigai.

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