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Paris e a fotografia

Fiquei encantado. As ampliações estão de outro mundo. São verdadeiros

 quadros e estou bem contente com este magnífico resultado.

Mostrei imediatamente a todos estas obras-primas. Todos admiraram muito.

(Gilberto Ferrez, Diário de viagem à Europa, diário 2, p. 25)

A Academia de Ciências da França anunciou, em 1839, o processo para registrar imagens de forma permanente desenvolvido por Louis Jacques Mandé Daguerre. Utilizando-se de uma placa de metal sensibilizada com vapor de iodo e de uma câmara escura, tornou-se possível fixar imagens após 25 a trinta minutos de exposição à luz. Devido a esse longo tempo, a imobilidade do objeto se impunha, e Daguerre apontou seu invento para as ruas de Paris. Boulevard du temple, daguerreótipo de 1838, mostra o que permaneceu imóvel em uma das ruas mais agitadas de Paris na época: seus prédios. A partir daí, a fotografia foi utilizada para documentar as transformações urbanas aceleradas pelas quais passava Paris. Esse tipo de registro fotográfico caracterizou-se pela preocupação com detalhes arquitetônicos, foco em prédios e monumentos, enquadramento frontal e, praticamente, ausência de pessoas, o que acabou por condicionar, em grande medida, as fotografias de cidades produzidas em outras partes do mundo.

Paradigma para cidades em diversos países – como Rio de Janeiro e Manaus, também representadas nesta exposição –, Paris sofreu um processo de remodelamento urbano, conduzido por Haussmann, na segunda metade do século XIX, que pôs abaixo quarteirões inteiros de configuração medieval para possibilitar a abertura dos afamados boulevards. A cidade, dessa vez fotografada por Eugène Atget, pioneiro na documentação fotográfica, tem suas reminiscências registradas em trabalho que adquiriu uma importância central para arquitetos, urbanistas e profissionais ligados à preservação do patrimônio construído. Atget percorreu as ruas de Paris, realizando imagens de uma cidade que desaparecia. Esculturas, parques, edificações, figuras populares habitaram suas imagens e as fizeram ganhar repercussão internacional, passando a integrar coleções dos mais importantes museus do mundo.

Gilberto Ferrez viaja para Paris no final da década de 1920, conhecida como “os loucos anos 20”, quando a cidade, passados os horrores da Primeira Guerra Mundial, se torna um polo de atração para artistas e intelectuais de todo o mundo. A efervescência do período resultou em contribuições artísticas e sociais produzidas por nomes como Cole Porter, Ernest Hemingway, Ezra Pound, F. Scott e Zelda Fitzgerald, Gertrude Stein, James Joyce, Josephine Baker, Matisse, Miró, Modigliani, Picasso, Salvador Dali e T. S. Eliot. A viagem registrada por Gilberto Ferrez em fotografias e diário, entretanto, possui uma dupla natureza: íntima e sentimental no percurso realizado e profissional nos compromissos de negócios e no aperfeiçoamento como fotógrafo. 

O fotógrafo

Gilberto Ferrez foi um fotógrafo singular. Nascido em 1908, tinha entre seus ancestrais o bisavô Zeferin Ferrez, escultor que chegou à cidade do Rio de Janeiro com a Missão Artística Francesa; o avô Marc Ferrez, considerado o mais importante fotógrafo atuante no Brasil no século XIX; e o pai Júlio Ferrez, cineasta e um dos precursores do cinema brasileiro, juntamente com o pai Marc e o irmão Luciano.

Gilberto construiu sua trajetória profissional em torno da pesquisa, da prática, da crítica de arte e do colecionismo de fotografias e de brasiliana, entre outras atividades relacionadas à preservação do patrimônio. Tornou-se um dos principais colecionadores de fotografia oitocentista, contribuindo para que esses documentos fossem reconhecidos como fontes importantes para os estudos históricos e compreendidos como passíveis de preservação.

O acervo do fotógrafo, integrante do fundo Família Ferrez, custodiado pelo Arquivo Nacional, expressa o seu incansável trabalho de pesquisa em arquivos públicos e privados de diversos países, em busca de documentos a respeito principalmente da história da cidade do Rio de Janeiro, mas também de Recife e Salvador, assim como sobre as obras realizadas por viajantes estrangeiros que retrataram o país. Suas pesquisas resultaram em dezenas de livros, numerosos artigos em jornais e revistas brasileiros e no exterior, e em merecido reconhecimento internacional.

Outro aspecto do acervo diz respeito ao seu trabalho como fotógrafo e aos registros que pacientemente realizava em diários. Sobre o primeiro, o fotógrafo e pesquisador Pedro Vasquez ressalta “as qualidades plásticas intrínsecas”. Os diários, por sua vez, constituem registros inestimáveis tanto de uma época quanto do olhar de Gilberto Ferrez para o mundo.

O álbum

Em sua primeira ida à Europa, Gilberto Ferrez, então com 19 anos, visitou diversos países e passou uma longa temporada na França, país onde a viagem se inicia e termina. Ao mesmo tempo em que registra a cidade como quem está se aprimorando na técnica de fotografar, escreve um diário cujos trechos serão aqui entrelaçados às imagens. No seu aperfeiçoamento como fotógrafo, Gilberto se desafia registrando água, reflexos, detalhes e panoramas, e aos poucos vai construindo um olhar afetivo sobre a cidade, a ponto de algumas ampliações das fotografias ali tiradas encontrarem-se mais tarde emolduradas e expostas no escritório da sua residência, no Rio de Janeiro.

Ferrez organiza um álbum de viagem que aguarda uma narrativa oral: diário fotográfico com os pontos altos dos passeios efetuados; legendas escritas à mão subindo pelas bordas das fotografias e, às vezes, derramando-se de uma para outra; lugares indicados com precisão para acionar a memória no momento de mostrar as imagens; fotografias dispostas nas páginas da forma tradicionalmente vista em álbuns do mesmo período – uma vertical centralizada, comandando a página, circundada por quatro horizontais, às vezes superpostas. Em paralelo ao trabalho de fotografar, Gilberto Ferrez realiza anotações em um diário. Este módulo da exposição busca reintegrar os dois tipos de registro que resultaram da viagem – as fotografias e as anotações pessoais.

Ao longo do processo de selecionar, fotografar, selecionar novamente, organizar em álbum, Gilberto Ferrez tipifica o que era o ato de fotografar analógico, que a popularização do registro digital pode fazer esquecer, ou mesmo tornar incompreensível. Gilberto atua em uma época em que o número de fotografias era contado, determinado pelas poses disponíveis no filme fotográfico, o que exigia certa economia por parte do fotógrafo; havia um hiato relativamente longo entre o ato de fotografar e o de ver a imagem pronta, já que era necessário levar o filme a um laboratório e esperar pela revelação e a surpresa – ficaram boas!

A viagem atende diferentes propósitos: Gilberto vai à França para estudar, realizar encontros comerciais e visitar empresas cinematográficas. Em seu diário, mistura línguas ao longo das páginas e, às vezes, dentro de uma mesma frase. Do amálgama de português com francês, e depois do inglês que vai aprendendo com uma professora que é “um colosso”, é possível vislumbrar um rapaz que não cansa de se maravilhar com Paris, elegendo em uma página o parque mais bonito da cidade só para, dali a outra, encontrar um novo mais bonito que o primeiro. Enquanto isso, vai fotografando Paris e dando preferência a enquadramentos praticamente sem pessoas. Realiza, assim, verdadeiros retratos da cidade, em que a materialidade dos prédios e de outros elementos arquitetônicos é o objeto fotografado.

A experiência escrita dessa primeira ida à Europa é matizada pela presença/ausência dos pais. Gilberto ressente-se da falta de notícias e utiliza-se das diferentes línguas que conhece para expressar sua melancolia. Quando juntos, entremeia anotações carinhosas nas bordas das fotografias mamãe no segundo andar da Torre Eiffel, papai em Cluny. A experiência fotografada é a do deslumbramento com a cidade que tem prédios dispostos “de modo a dar uma perspectiva única no mundo”

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